É a transcrição de um artigo publicado num jornal, por Paulo Rosa,
Economista Sénior do Banco Carregosa:
O espírito comunitário da bitcoin, a teoria de jogos e as aldeias dos nossos avós
Em muitas aldeias portuguesas, ainda há algumas décadas, sobretudo em Trás-os-Montes, o espírito comunitário estava muito enraizado. A água e os rebanhos eram comuns, a casa do Povo e a igreja haviam sido erguidas com a força, o trabalho e o empenho de todos. Como o dinheiro escasseava, algum trabalho era partilhado, o Manuel e o António ajudavam o Joaquim a semear as batatas e no dia seguinte era vez da sementeira de milho do Manuel, sendo também habitual a troca direta de alguns bens. Malhadas de centeio e desfolhadas de milho eram realizadas por toda a comunidade, ao som de músicas e cantares, tendo assim nascido muito ranchos e bandas filarmónicas. Era partilhado o gado para lavrar as terras e todos ajudavam nas vindimas do Francisco e na pisa das uvas no lagar do Guilherme. A “vezeira” estabelecia a vez de cada uma das famílias no pastoreio dos rebanhos comuns nos terrenos baldios. Nada deste modo de vida comunitário e relativamente descentralizado era imposto, as pessoas eram livres de escolherem, mas a cooperação era na realidade a estratégia mais vantajosa, numa alusão à teoria de jogos. Era uma cumplicidade não só económica, mas também cultural, alicerçada nos fortes laços familiares ancestrais. Muitas aldeias foram fundadas há alguns séculos pelo assentamento de uma única família num determinado lugar, em terras mais ou menos férteis.
Entretanto, o desenvolvimento, a emigração de alguns, sobretudo para a França, e o emprego nas cidades de outros tantos, nomeadamente nos serviços e na função pública, trouxeram independência a boa parte das famílias, mas mais encargos fiscais também. Diante da perceção do pagamento de impostos, agora é quase unânime entre as pessoas que os melhoramentos na aldeia ficam a cargo das juntas de freguesia e do Estado. O trator substitui a força do gado. Os incêndios são combatidos atualmente pelos bombeiros, há décadas eram os populares. No entanto, ainda hoje continua o usufruto dos baldios, mas o espírito comunitário já não é o mesmo.
As antigas aldeias comunitárias eram suportadas por sistemas relativamente descentralizados, não existindo um poder hierárquico a coordenar a economia local. Regras próprias de boa convivência em comunidade substituíam muitas vezes a lei do país, percecionando as pessoas da aldeia maiores ganhos e benefícios se todos cooperassem para o bem comum. Hoje, a vida é relativamente comandada pelo poder central em Lisboa.
Há também na bitcoin (BTC) um espírito comunitário, mas à escala da aldeia global, existindo o incentivo para os mineradores desta criptomoeda cooperarem. O mundo da teoria de jogos gira em torno de incentivos, tendo sido a Bitcoin projetada como um sistema descentralizado de recompensas e penalizações. Os mineradores são recompensados por validarem transações e manterem a segurança da rede, mas são penalizados se tentarem enganar o sistema. Todavia, num sistema descentralizado como a blockchain da bitcoin, onde não existem laços familiares entre os intervenientes, participantes, desenvolvedores, mineiros e detentores de BTC, dir-se-ia que seria quase impossível as pessoas confiarem umas nas outras. No entanto, a prova de esforço (proof of work) e a respetiva recompensa conferem ao sistema a fidúcia necessária, algo que seria impensável numa aldeia comunitária ancestral se as pessoas se desconhecessem. A prova de esforço e a tolerância a falhas, precisando apenas de 51% para validar uma transação, desde que haja um posterior consenso de toda a rede, culminou na resolução do secular “problema dos generais bizantinos”. De acordo com este enigma, no antigo império bizantino, a tomada de uma cidade só seria bem-sucedida se todos os generais atacassem ao mesmo tempo. Não existindo meios de comunicação fiáveis e tratando-se de um sistema descentralizado como o da BTC, sem um comando único para todos os exércitos, a probabilidade de um general e das suas tropas recuarem, enganados por um mensageiro traidor, era muito elevada, culminando numa derrota.
No entanto, na BTC caso não haja consenso, há uma bifurcação e surge uma nova cadeia (um hard fork), tal como aconteceu com a bitcoin cash, quando um dos principais mineiros propôs uma atualização do protocolo, nomeadamente à dimensão do bloco minerado, e a restante comunidade não acompanhou, não existindo consenso. No momento da bifurcação, qualquer pessoa que possuía BTC passou a possuir o mesmo número de unidades bitcoin cash. Há várias cripotmoedas que surgiram de hard forks da Bitcoin. Entretanto, há também soft forks, ou seja, quando uma alteração ao protocolo exige a anulação apenas de blocos de transações anteriormente válidos. Como os “nós” antigos reconhecerão os novos blocos como válidos, um soft fork é compatível com as versões anteriores. Este tipo de fork requer apenas a atualização da maioria dos mineradores para aplicar as novas regras, em oposição a um hard fork que exige que todos os “nós” atualizem e concordem com a nova versão. O Governo dos EUA poderia dominar a BTC, investindo num poder de computação (hash rate) de 550 exabytes, atualmente o grau de dificuldade na mineração de um bloco de BTC, à volta de 5 milhões de computadores específicos para a mineração de criptomoedas (as famosas ASIC, Application-Specific Integrated Circuits), um custo de 25 mil milhões de dólares, se cada ASIC custasse 5 mil dólares por hipótese. Mas muito provavelmente seria mesmo um domínio pontual, uma vez que a comunidade BTC, eventualmente, não concordaria com a validação dos blocos minerados pelos computadores administração norte-americana, acontecendo um hard fork.
Com um mecanismo de consenso de prova de trabalho (proof of work) com regras claras e objetivas da sua blockchain, a BTC superou o “problema dos generais bizantinos”. Ao adicionar informações à blockchain, os denominados blocos, um membro da rede deve publicar provas do seu hercúleo esforço na obtenção do bloco. Este trabalho tem um custo elevado para o minerador, incentivando-o a partilhar informações precisas.
Entretanto, os entusiastas desta criptomoeda têm o cuidado de mencionar repetidamente a competição entre mineradores, apesar de 10% dos mineradores controlarem 90% da rede Bitcoin e 0,01% cerca de 50%, de acordo com o National Bureau of Economic Research, em outubro de 2021.
Mas será a prova de trabalho uma cabal evidência da existência de concorrência entre mineiros? Não deixa de existir competição, pelo menos aparentemente, mas as pools de mineradores, juntando esforços e beneficiando de economias de escala e custos de energia mais baratos em determinadas regiões do planeta, representam teoricamente oligopólios.
Mas é certo que não é fácil a moedas descentralizadas, como as criptomoedas, manterem simultaneamente segurança cada vez mais reforçada e almejarem também o seu sucessivo crescimento, atraindo cada vez mais pessoas para a sua comunidade. É o trilema da descentralização, segurança e escalabilidade. Moedas descentralizadas precisam de escolher entre segurança e escalabilidade, sendo esse o atual mantra de toda a comunidade cripto. A própria rede de uma determinada blockchain de uma cripotomoeda precisa de crescer para facilitar transferências, entradas e saídas de dinheiro, evitando congestionamentos e atrasos no processamento das transações, mas adicionar escalabilidade à blockchain de uma criptomoeda tem um preço.
As criptomoedas descentralizadas que querem ser cabais formas de pagamentos, facilitando ainda mais as transações a custos mais baixos, precisam de uma rede a crescer, ou seja, aumento da escalabilidade, comprometendo a segurança dessa mesma rede. Se por hipótese numa autoestrada de 3 faixas passam 100 carros por minuto, caso haja necessidade de transitarem 300 viaturas por minuto, a estrada tem de ser alargada. E se tiverem de passar a uma velocidade mais elevada, mais larga tem de ser a estrada. Quanto mais larga, quantas mais ligações e mais autoestradas, com mais “nós”, mais rotundas, mais saídas e entradas, mais policiamento será necessário.
A BTC mantém a sua segurança porque cada transação precisa de ser validada por mais de metade dos “nós” da rede, e quanto mais “nós” fizerem parte da rede, mais descentralizada será a blockchain da BTC, aumentando a segurança que a rede oferece. Contudo, o elevado peso das informações processadas para manter o sistema partilhado, os tempos de transação são mais lentos, tornando-se num sistema mais difícil de escalar. No entanto, a BTC e os seus entusiastas não pretendem crescer nas transações, mas alcançarem o estatuto de principal reserva de valor mundial, ou seja, ser o “ouro digital”. Atualmente, existem 187 mil toneladas de ouro, mineradas ao longo de milénios, equivalendo a um market cap de 12,3 biliões de dólares de ouro ao preço de 2050 dólares por onça troy (31,1 gramas) de ouro. A capitalização da BTC é de 844 mil milhões de dólares.
Tal como nos sistemas descentralizados das aldeias comunitárias e da comunidade da BTC, as pessoas são livres de escolherem entre sistemas descentralizados, com todos os riscos que acarretam, ou um poder centralizado num governo ou num Estado, com todos os custos que tem.
As pessoas podem escolher entre o custo da redoma de mais paternalismo ou o risco de uma maior independência.
Paulo Monteiro Rosa in Vida Económica, a 2 de fevereiro de 2024
Gostei muito do artigo, tem algumas imperfeições, como utilizar o termo “prova de esforço” em vez de prova de trabalho, mas no geral está muito bom.
Outra pequena incorreção é “apesar de 10% dos mineradores controlarem 90%”, neste caso não são mineradores mas sim pools. É uma confusão recorrente, entre “pool de mineração” e “mineradores”.